Saudações:

Em homenagem e reverência profunda à minha Mestra de Ordenação e Treinamento, Venerável Shingetsu Coen Osho.
Que seu Corpo-Dharma, seja como um diamante inquebrantável.
Que tenha próspera longevidade e saúde ilimitada.
Que nenhum mal a atinja.
Que todos os seus esforços sejam recompensados.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Ultimo capitulo do livro Siddharta de Herman Hesse

GOVINDA

(Extraído do livro Sidarta, de Hermann Hesse)

CERTA feita, Govinda repousava em companhia de outros monges naquele parque que a cortesã Kamala dera de presente aos discípulos de Gotama. Foi lá que ouviu falar de um balseiro idoso, que morava junto ao rio, a uma jornada de distância e ao qual o povo considerava um sábio.
Prosseguindo no seu caminho, Govinda escolheu a estrada que o conduzisse até à balsa. Estava curioso de conhecer esse velho. Pois, muito embora tivesse passado toda a sua vida em obediência aos regulamentos e os monges mais jovens lhe tributassem o respeito que mereciam a sua idade e a sua modéstia, jamais se tinham extinguido na sua alma a inquietação e o afã da pesquisa.

Chegado ao rio, pediu ao ancião que o levasse ao outro lado. Ao desembarcarem, disse-lhe:
- Sempre te mostras muito gentil para com os monges e os peregrinos. Já transportaste através do rio grande número dos nossos. Mas dize-me, ó balseiro, não serás também tu daqueles que procuram o caminho certo?

Respondeu Sidarta, com um sorriso a iluminar-lhe os olhos cansados:
- Mas como, ó venerável? Ainda andas em busca do caminho? Ora, estás de idade provecta e usas os trajes dos discípulos de Gotama.
- É verdade que sou velho - admitiu Govinda. – Mas nunca cessei de pesquisar. Parece que será meu destino jamais abandonar a busca. Tenho a impressão de que também tu procuraste a senda. Não me queres revelar algo a esse respeito, meu prezado amigo?

Ao que replicou Sidarta:
- Que poderia eu dizer-te, ó reverendo? Só, talvez, que procuras demais, que de tanta busca não tens tempo para encontrar coisa alguma.
- Por quê? - perguntou Govinda.
- Quando alguém procura muito - explicou Sidarta - pode facilmente acontecer que seus olhos se concentrem exclusivamente no objeto procurado e que ele fique incapaz. de achar o que quer que seja, tornando-se inacessível a tudo e a qualquer coisa porque sempre só pensa naquele objeto, e porque tem uma meta, que o obceca inteiramente.
Procurar significa: ter uma meta. Mas achar significa: estar livre, abrir-se a tudo, não ter meta alguma. Pode ser que tu, ó venerável, sejas realmente um buscador, já que, no afã de te aproximares da tua meta, não enxergas certas coisas que se encontram bem perto dos teus olhos.

- Ainda não te compreendo inteiramente - insistiu Govinda. - Que queres dizer com isso?
E Sidarta respondeu:
- Em outra época, ó venerável, há muitos anos, já estiveste aqui, à beira deste rio. Junto à riba, viste um homem que dormia. Sentaste-te a seu lado, a fim de velares pelo seu sono. E todavia, ó Govinda, não reconheces aquele homem.
Pasmo, como que enfeitiçado, o monge fitou o rosto do balseiro.
- Serás mesmo Sidarta? - perguntou em voz balbuciante. - Também desta vez não te teria reconhecido. Saúdo-te de todo coração, ó Sidarta. Sinto-me realmente feliz por ver-te mais uma vez! Mudaste bastante, meu amigo... Pois então, ficaste balseiro?

Sidarta riu-se jovialmente.
- Sim, sou balseiro. Há pessoas, ó Govinda, que necessitam transformar-se freqüentemente e usar fantasias de toda espécie. Sou uma dessas pessoas. Sê bem-vindo, meu caro. Passa a noite na minha cabana!
Govinda pernoitou na casinha de Sidarta. Dormiu no leito outrora ocupado por Vasudeva. Dirigiu inúmeras perguntas ao amigo de infância. Sidarta teve de contar-lhe muita coisa da sua vida.
Quando, na manhã seguinte chegou a hora de continuar a romaria, Govinda disse, depois de alguma hesitação:
- Antes de eu prosseguir na minha jornada, permite-me mais uma pergunta, ó Sidarta: tens alguma doutrina? Algum credo? Algum conhecimento que te oriente e te ajude a viver, praticando o Bem?
- Ora, meu caro amigo, - tornou Sidarta - tu sabes muito bem que já na minha mocidade, naqueles dias que passamos na floresta, em companhia dos ascetas, cheguei a desconfiar de doutrinas e de professores, a tal ponto que lhes virei as costas. E assim me conservei.
Desde então, porém, tive numerosos mestres. Uma formosa cortesã serviu-me de instrutora durante longos anos. Um comerciante abastado ministrou-me ensinamentos. Alguns jogadores de dados deram-me aulas.
Certa feita, um peregrino, discípulo do Buda, foi meu mestre, quando permaneceu sentado perto de mim, enquanto eu dormia na selva, por ocasião de uma romaria. Também a ele devo certas noções e lhe fico grato por isso, muito grato.
Mas a maior parte do que aprendi veio-me do rio e de meu predecessor, o balseiro Vasudeva. Foi um homem simples, esse Vasudeva. Nenhum filósofo. Mas sabia o necessário, tão bem quanto Gotama. Reputo-o, um ser perfeito, um santo.

- Parece-me - disse Govinda - que ainda gostas de uma pontada de ironia, amigo Sidarta. Acredito no que dizes. Sei que não seguiste nenhum mestre. Mas, supondo que não tenhas descoberto doutrina alguma pelo teu próprio esforço, não achaste pelo menos certas idéias e percepções que sejam tuas e te fácilitem a existência? Se me comunicasses algo a respeito delas, alegrarias o meu coração.
- Nada verdade me vieram algumas idéias - respondeu Sidarta - e de quando em quando tive percepções. Ocorreu-me às vezes sentir, por uma hora e mesmo durante um dia inteiro, a presença do saber no meu íntimo, assim como sentimos o pulso da vida no nosso coração. Certamente refleti sobre muita coisa, mas seria difícil para mim transmitir-te os meus pensamentos.
Olha, meu querido Govinda, entre as idéias que se me descortinaram encontra-se esta: a sabedoria não pode ser comunicada. A sabedoria que um sábio quiser transmitir sempre cheirará a tolice.
- Estás brincando? - perguntou Govinda.
- Não, brinco, não. Digo apenas o que percebi. Os conhecimentos podem ser transmitidos, mas nunca a sabedoria. Podemos achá-la; podemos vivê-la; podemos consentir em que ela nos norteie; podemos fazer milagres através dela. Mas não nos é dado pronunciá-la e ensiná-la.
Esse fato, já o vislumbrei às vezes na minha juventude. Foi ele que me afastou dos meus mestres. Uma percepção me veio, ó Govinda, que talvez se te afigure novamente como uma brincadeira ou uma bobagem. Reza ela: "O oposto de cada verdade é igualmente verdade."
Isso significa: uma verdade só poderá ser comunicada e formulada por meio de palavras, quando for unilateral. Ora, unilateral é tudo quanto possamos apanhar pelo pensamento e exprimir pela palavra. Tudo aquilo é apenas um lado das coisas, não passa de parte, carece de totalidade, está incompleto, não tem unidade.
Sempre que o augusto Gotama nas suas aulas nos falava do mundo, era preciso que o subdividisse em Sansara e Nirvana, em ilusão e verdade, em sofrimento e redenção. Não se pode proceder de outra forma. Não há outro caminho para quem quiser ensinar.
Mas o próprio mundo, o ser que nos rodeia e existe no nosso íntimo, não é nunca unilateral. Nenhuma criatura humana, nenhuma ação é inteiramente Sansara nem inteiramente Nirvana.
Homem algum é totalmente santo ou totalmente pecador. Uma vez que facilmente nos equivocamos, temos a impressão de que o tempo seja algo real. Não, Govinda, o tempo não é real, como verifiquei em muitas ocasiões.
E se o tempo não é real, não passa tampouco de ilusão aquele lapso que nos parece estender-se entre o mundo e a eternidade, entre o tormento e a bem-aventurança, entre o Bem e o Mal.
- Mas como? - perguntou Govinda, angustiado.
- Presta atenção, meu querido, muita atenção! O pecador que eu sou, e que tu és, é pecador, mas um dia voltará a ser Brama. Em determinado momento alcançará o Nirvana e será o Buda. Mas, olha bem: esse "um dia" é apenas uma ilusão, um termo convencional.
O pecador não se encontra a caminho do estado de Buda; não está em plena evolução, muito embora o nosso cérebro seja incapaz de imaginar as coisas de outro modo. Pelo contrário, no pecador já se acha contido, hoje, agora mesmo, o futuro Buda.
Todo o seu porvir já está presente. Tu deves respeitar na pessoa desse pecador, na tua própria pessoa, na de qualquer homem, o Buda em botão, o Buda possível, o Buda oculto.
O mundo, amigo Govinda, não é imperfeito e não se encaminha lentamente rumo à perfeição. Não! A cada instante é perfeito. Todo e qualquer pecado já traz em si a graça. Em todas as criancinhas já existe o ancião.
Nos lactentes já se esconde a morte, como em todos os moribundos há vida eterna. A homem algum é dado perceber até que ponto o seu próximo já avançou na senda que lhe coube.
No salteador e no jogador, o Buda espera a sua hora, e no brâmane, o salteador. Na meditação profunda oferece-se-nos a possibilidade de aniquilarmos o tempo, de contemplarmos, simultaneamente, toda a vida passada, presente e futura.
Então tudo fica bem; tudo, perfeito; tudo, Brama. Por isso, o que existe me parece bom. A morte, para mim, é igual à vida; o pecado, igual à santidade; a inteligência, igual à tolice. Tudo deve ser como é.
Unicamente o meu consenso, a minha vontade, a minha compreensão carinhosa são necessários para que todas as coisas sejam boas, a ponto de somente me trazerem vantagens, sem nunca me prejudicarem.
No meu corpo e na minha alma fiz a experiência de quanto carecia do pecado, da volúpia, da cobiça de bens materiais, da vaidade, de quanto precisava até do mais abjeto desespero, para que aprendesse a desistir da minha obstinação, a querer bem ao mundo, a cessar de compará-la a qualquer outro mundo imaginário, que correspondesse aos meus desejos, a algum tipo de perfeição brotado do meu cérebro e para que, deixando-o tal como é, me limitasse a amá-lo e a gostar de fazer parte dele...
Ora, Govinda, esse são alguns dos pensamentos que me vieram.

Baixando-se, Sidarta apanhou uma pedra. Enquanto a sopesava com a mão, disse displicentemente:
- Isto é uma pedra, mas daqui a algum tempo talvez seja terra, e da terra se transformará numa planta, ou num animal, ou ainda num homem. Em outra época, quem sabe, eu teria dito:
"Essa pedra é apenas uma pedra. Não tem nenhum valor. Pertence ao mundo da Maia. Como, no entanto, pode acontecer que, no decorrer do ciclo das metamorfoses, ela se converta num ser humano e adquira espírito, presto certa atenção a ela.
Eis o que, provavelmente, eu teria pensado naqueles tempos. Hoje, porém, raciocino assim: "Esta pedra é pedra, mas é também animal, é também Deus, é Buda. "Não lhe tributo reverência ou amor, porque ela um dia talvez possa se tomar isso ou aquilo, senão porque é tudo isso, desde sempre e sempre.
E precisamente por ser ela uma pedra, por apresentar-se-me como tal, hoje, neste momento, amo-a e percebo o valor, o significado, que existe em qualquer uma das suas veias e cavidades, nos amarelos e nos cinzas da sua coloração, na sua dureza, no som que lhe extraio ao bater nela, na aridez ou na umidade da sua superfície. Há pedras que, ao tato, dão-nos a impressão de tocarmos em sabão ou óleo. Outras são como folhas ou como areia.
Cada qual é diferente e profere o Om à Sua maneira peculiar. Todas elas são Brama, mas, simultânea e especialmente, são pedras, quer possam ser oleosas ou viscosas. Justamente isso me agrada. Parece-me maravilhoso, realmente digno de veneração...
Não me obrigues, porém, a falar mais. As palavras deturpam sempre o sentido arcano. Todas as coisas alteram-se, logo que lhes pronunciamos o nome. Então se tornam levemente falsas e ridículas. "Pois é. Mas, olha, até isso acho bem feito. Aprovo inteiramente e com o maior prazer o fato de que aquilo que para uma pessoa é um tesouro e uma grande sabedoria represente para os demais homens, rematada tolice.

Govinda ouviu-o em silêncio.
Após uma pausa, perguntou timidamente: - Por que me falaste da pedra?
- Foi sem intenção. Ou talvez quisesse dizer que amo de fato a pedra e o rio e todas essas coisas que contemplamos e das quais muito podemos aprender. Sei amar uma pedra, ó Govinda, e também uma árvore ou um pedacinho de sua casca. São coisas, e coisas podem ser amadas.
Mas não posso amar palavras. Por isso não me servem as doutrinas. Não têm nem dureza nem maciez, não têm cores nem arestas, nem cheiro nem sabor. Não têm nada a não ser palavras. Talvez seja esta a razão por que não encontres a paz: o excesso de palavras. Pois, Govinda, também a redenção e a virtude, o Sansara e o Nirvana:
são meras palavras. Não existe coisa alguma que seja Nirvana. O que existe é apenas a palavra Nirvana.

Respondeu Govinda:
- Não, não meu amigo, Nirvana não é apenas uma palavra. É uma idéia.

Mas Sidarta prosseguiu:
- Uma idéia. Pois não. Confesso-te, meu caro, que não faço muita distinção entre palavras e idéias. Para falar com toda a franqueza: não ligo grande importância às próprias idéias. As coisas têm para mim muito maior significado.
Nessa balsa aí, para dar-te um exemplo, houve um homem, meu predecessor e meu mestre, que durante logos anos, à sua maneira singela, cria no rio e em nada mais. Percebera que a voz do rio se dirigia a ele. Dela aprendia. Ela educava-o e instruía-o. O rio parecia-lhe um deus.
Por muito tempo ignorava esse homem que qualquer aragem, qualquer nuvem, ou ave, ou besouro, são igualmente divinos e sabem tanto, podem ensinar-nos tanto quanto aquele adorado rio. Ora, quando esse santo se encaminhou à selva, sabia tudo, sabia mais do que tu e eu, sem professor, sem livros, unicamente por ter acreditado no rio.

Replicou Govinda:
- Mas, dize-me: aquilo que chamas de coisas é mesmo algo real, algo essencial? Não será apenas uma ilusão da Maia, simples miragem, pura aparência? Essa tua pedra, tua árvore, teu rio, são ou não são realidades?

- Esse problema - disse Sidarta - não me preocupa tampouco. Quanto a mim, as coisas podem ser mera aparência, uma vez que, neste caso, também eu sou aparência, e assim serão elas sempre meus iguais. Eis o que as torna para mim tão caras e venerandas: são como eu. Por isso posso amá-las.
E com isso te comunico uma doutrina que te fará rir, ó Govinda: tenho para mim que o amor é o que há de mais importante no mundo.
Analisar o mundo, explicá-lo, menosprezá-lo, talvez caiba aos grandes pensadores. Mas a mim me interessa exclusivamente que eu seja capaz de amar o mundo, de não sentir desprezo por ele, de não odiar nem a ele nem a mim mesmo, de contemplar a ele, a mim, a todas as criaturas com amor, admiração e reverência.

- Compreendo - disse Govinda. - E, no entanto, é precisamente isso o que o Augusto qualificava de ilusão. Ele proclamou a benevolência, a tolerância, a compaixão, o comedimento, mas nunca o amor. Pelo contrário, proibiu-nos ligarmos o nosso coração amorosamente às coisas terrenas.

- Sei disso - tornou Sidarta, cujo sorriso resplandecia como ouro. - Sei disso, ó Govinda. Imagina só: neste instante já nos enredamos na confusão das opiniões. Estamos em plena discussão a propósito de palavras.
Pois bem, não posso negar que as palavras que proferi a respeito do amor estão em desacordo com os ensinamentos de Gotama. Justamente por isso desconfio tanto de quaisquer palavras, porquanto sei que essa divergência é apenas ilusão. Tenho certeza de estar concorde com Gotama.
Como seria possível que Ele desconhecesse o amor; Ele que reconhecia a efemeridade e a fraqueza de toda a natureza humana e todavia amava os homens a ponto de devotar a sua longa e laboriosa existência à única tarefa de ajudá-los e ensiná-los.
Também com relação a ele, teu grande mestre, as coisas têm, a meu ver, mais valor do que as palavras. O gesto da sua mão me importa mais do que as suas opiniões. Não é nos seus discursos e nas suas idéias que se me depara a sua grandeza, senão unicamente nos seus atos e na sua vida.

Por muito tempo, os dois velhos permaneceram calados. A seguir, Govinda inclinou-se para despedir-se.
- Fico-te muito grato, ó Sidarta - disse - por teres-me revelado um pouco dos teus pensamentos. É bem verdade que alguns deles são bastante estranhos. Não consegui compreender todos eles de uma vez. Mas, seja como for, agradeço-te e desejo-te dias tranqüilos.
(Secretamente, porém, no fundo do seu coração, ponderava: “Esse Sidarta é um homem esquisito. Prefere idéias curiosas. Sua doutrina parece tola. Como são diferentes os ensinamentos do Sublime! Parecem mais claros, mais puros, mais acessíveis. Neles, nada é excêntrico, disparatado, ridículo.
E, no entanto, acho que há uma grande diferença entre as idéias de Sidarta, de um lado, e suas mãos, seus pés, seus olhos, sua testa, seu modo de respirar, de sorrir, de andar, de saudar-me do outro. Nunca, desde o dia em que o nosso augusto Gotama entrou no Nirvana, nunca mais vi pessoa alguma em face da qual sentisse logo: esse aí é um santo!
Isso somente me ocorreu agora, na presença de Sidarta. Pode ser que a sua doutrina seja surpreendente, que suas palavras soem pasmosas. Mas seu olhar, sua mão, sua pele, seu cabelo - tudo isso irradia tamanha calma, doçura e santidade como jamais encontrei em nenhum outro homem, desde a última morte do nosso excelso Mestre.

Enquanto falava assim de si para si, com o coração agitado por sentimentos contraditórios, aproximou-se mais uma vez de Sidarta como que atraído pela afeição.
Em seguida, curvou-se profundamente diante do amigo que se conservava sentado, imóve1.
- Sidarta - disse então - ficamos velhos. É pouco provável que nos tomemos a ver sob esta forma da nossa existência. Vejo, meu querido, que encontraste a paz. Confesso que eu não consegui localizá-la. Dize-me mais uma palavra, ó Venerando. Dá-me algo que eu possa levar comigo, alguma coisa que me seja possível entender e assimilar durante a minha jornada. Olha, Sidarta, esse meu caminho é às vezes bastante laborioso e sombrio.
Sidarta permaneceu calado. Limitou-se a fitar o outro com aquele seu sorriso plácido. Govinda cravou os olhos no rosto do amigo. No seu olhar, liam-se angústia, saudade, sofrimento, tanto como contínua busca, contínuo desencontro.

Sidarta percebeu-o e sorriu:
- Acerca-te de mim! - soprou ao ouvido de Govinda.
- Inclina-te mais! Mais ainda. Chega-te para bem perto de mim! E agora me dá um beijo na testa, ó Govinda!

Govinda pasmou-se, mas, atraído por sua grande afeição e por algum pressentimento, obedeceu ao desejo de Sidarta. Achegando-se a ele, imprimiu-lhe os lábios na fronte. E nesse instante aconteceu-lhe qualquer coisa singular.
Enquanto os seus pensamentos ainda se detinham nas palavras estranhas, proferidas por Sidarta; enquanto seu espírito se esforçava, relutante e improficuamente, por eliminar o tempo e por representar-se a unidade de Nirvana e Sansara, enquanto no seu íntimo certo desdém pelas opiniões do amigo se debatiam com irrestrita ternura e reverência, deu-se com ele o seguinte fenômeno:
Govinda já não enxergava o semblante de Sidarta, seu companheiro. Em vez dele via outros rostos, inúmeros, toda uma fila, uma torrente de rostos, centenas, milhares, que todos eles apareciam, sumiam e todavia davam a impressão de estar presentes simultânea mente, rostos esses que a cada instante se modificavam e renovavam e, contudo, eram sempre Sidarta.
Via a cabeça de um peixe, uma carpa, com a boca semi-aberta em infinita dor, peixe agonizante, de olhos vidrados. Via o rostinho de uma criança recém-nascida, vermelho, enrugado, a ponto de chorar. Via a fisionomia de um assassino, no momento em que varava com a faca o corpo de sua vítima e, ao mesmo tempo, via esse criminoso a ajoelhar-se, algemado, para que o algoz o decapitasse com um só golpe de terçado.
Via os corpos desnudos de homens e mulheres, entrelaçados em posições e embates de desvairado amor. Via cadáveres prostrados, imóveis, gélidos, vazios. Via cabeças de animais, de javalis, crocodilos, elefantes, touros, aves.
Via divindades, Krishna, Agni... Via todos esses vultos e rostos ligados entre si por milhares de relações, cada qual a acudir o outro, a amá-la, a odiá-lo, a destruí-Ia, a pari-Ia de novo.
Cada qual expressava o desejo de morrer, era apaixonada e dolorosa a profissão de efemeridade e, no entanto, não morria, apenas se modificava, renascia uma e outra vez, tomava aspectos sempre diversos, sem que o tempo se intercalasse entre uma e outra configuração.
E todos esses rostos repousavam, flutuavam, geravam-se mutuamente, esvaíam-se e confundiam-se. Mas por cima deles, sem exceção, estendia-se uma camada fininha, irreal e todavia existente, qual tênue chapa de vidro ou de gelo, camada transparente, casca, molde, máscara de água.
Pois, essa máscara morria, e essa máscara era o rosto risonho de Sidarta, que ele, Govinda, nesse momento, tocava com os lábios. E Govinda percebeu que esse sorriso da máscara, o sorriso da unidade acima do fluxo das aparências, o sorriso da simultaneidade muito além do sem-número de nascimentos e mortes, o sorriso de Sidarta, era idêntico àquele sorriso calmo, delicado, indevassável, talvez bondoso talvez irônico, de Gotama, o Buda, tal como ele próprio o observara centenas de vezes com profundo respeito.
Era assim - Govinda o sabia - que sorriam os seres perfeitos.

Tendo perdido a noção do tempo, já não sabendo se aquela visão durava um segundo ou um século, ignorando se já existiam Sidarta, Gotama, o eu e o tu, com as entranhas como que atravessadas por uma seta divina, cuja ferida tivesse doce sabor, com a alma enfeitiçada e confusa, detinha-se Govinda por mais alguns instantes. Inclinava-se por sobre o rosto plácido de Sidarta, no qual vinha de depositar um beijo, e que acabava de ser o cenário de todas aquelas formas, evoluções e existências.
O semblante não se modificara, depois que, sob a sua superfície, tornara a fechar-se o abismo da infinita multiplicidade. Sorria silenciosamente, suavemente, ternamente, talvez com bondade, talvez com ironia, assim como outrora sorrira o Sublime.

Govinda curvou-se em genuína reverência. Lágrimas de que não se dava conta corriam-lhe pelas faces idosas.
No seu coração ardia, qual fogo, o sentimento de caloroso amor e de submissa veneração.
Profundamente, até ao chão, inclinou-se Govinda diante de Sidarta, que se conservava sentado, imóvel, e cujo sorriso chamava à memória do amigo tudo quanto ele amara no curso da sua vida, tudo quanto já se lhe afigurara precioso e sagrado.
Fim.

Um comentário:

  1. Assim como se sentia Govinda, me sinto "perdido" nesse universo de informações deixadas pelo bem-aventurado.
    Muito bom o texto. Vou refletir mais sobre ele.
    Gasho.

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